
Por Fernando Lino, neuroeducador e especialista em segurança digital para famílias
Certa vez, durante uma palestra para famílias em uma escola, um pai me procurou no final do encontro com um relato marcante.
Ele contou que o filho, de 10 anos, estava com medo de ir ao estádio de futebol — um passeio que sempre adorou. O motivo? Dias antes, enquanto navegava nas redes sociais, o menino viu uma notícia sobre um acidente de carro que havia acontecido exatamente na mesma rua por onde eles passariam para chegar ao jogo.
Aquela informação, vista fora de contexto, sem explicações ou mediação, mexeu profundamente com a percepção de segurança do garoto. Para ele, a rua agora era um lugar perigoso. A notícia virou realidade absoluta — e o medo, concreto.
Esse episódio é só um entre tantos que revelam uma verdade cada vez mais evidente: o que as crianças consomem nas redes sociais não é neutro. Molda sua visão de mundo, influencia seus sentimentos e pode alterar até seus comportamentos cotidianos.
Um novo levantamento…
As crianças estão se informando mais do que muitos adultos imaginam. Ainda que não acessem portais de notícia nem assistam ao noticiário tradicional, elas estão em contato com fatos, opiniões e interpretações do mundo todos os dias — em vídeos do YouTube, cortes de podcasts no Instagram, tendências no TikTok e até em memes do WhatsApp.
Segundo o Life in Media Survey, 72% das crianças entre 11 e 13 anos consomem algum tipo de conteúdo noticioso. No entanto, esse contato é quase sempre passivo e fragmentado. Só 11% das crianças dizem buscar notícias ativamente.
Diante disso, surge a pergunta inevitável: isso é bom ou ruim?
A resposta não é simples — mas os riscos são claros
Ter acesso a informações desde cedo pode ser extremamente positivo. Ajuda a desenvolver senso de mundo, empatia e consciência social. O problema não está no contato com as notícias, mas no tipo de informação que chega até elas — e na ausência de mediação crítica para lidar com esse conteúdo.
As crianças hoje estão expostas a um volume gigantesco de dados, manchetes e opiniões, muitas vezes sem saber ao certo o que estão vendo. O maior risco não é que elas vejam demais, mas sim que vejam sem contexto.
O grande desafio: entender o “quadro maior”
Na internet, tudo aparece recortado. Uma fala fora de contexto, uma imagem chocante sem explicação, uma estatística solta sem histórico. E, para uma criança ou adolescente, que ainda está formando sua visão de mundo, esses recortes viram a realidade inteira.
É aí que mora um dos maiores desafios do bem-estar digital infantil: a falta de contexto.
Sem o quadro maior, uma notícia sobre guerra pode gerar medo desproporcional. Um dado sobre o meio ambiente pode provocar pânico. Um vídeo de opinião pode ser interpretado como verdade absoluta. O resultado? Ansiedade, desinformação e confusão.
Por isso, o papel dos pais não é apenas controlar o acesso, mas ajudar a preencher o que falta — explicar as nuances, apresentar as causas e consequências, situar a criança dentro de um contexto maior. Em vez de apenas perguntar “você viu isso?”, a pergunta mais poderosa pode ser: “o que te disseram que isso significa? E o que talvez não tenham te contado?”
Influenciadores digitais: quando a opinião se disfarça de fato
Outro aspecto importante da pesquisa é a forma como crianças veem influenciadores digitais com o mesmo peso informativo que jornalistas. A confiança é muitas vezes cega — e isso é preocupante.
Hoje, boa parte da formação de opinião infantil vem de pessoas carismáticas, com milhões de seguidores, que compartilham conselhos, visões de mundo e recomendações comerciais ao mesmo tempo, sem deixar claro o que é opinião, propaganda ou informação confiável.
Pais e educadores precisam ensinar as crianças a se tornarem leitores críticos também nas redes sociais. Um caminho prático é começar a fazer perguntas com elas, não por elas:
Essas perguntas não servem para criar desconfiança cega, mas sim para desenvolver discernimento — um ingrediente essencial do bem-estar digital.
Quando a notícia chega antes do preparo
Outro dado relevante do estudo: apenas 12% das crianças dizem gostar de acompanhar notícias. Mais de um terço relata que o conteúdo as deixa tristes, ansiosas ou sobrecarregadas.
Isso não é preguiça ou desinteresse. É falta de preparo emocional e contextual. As crianças estão recebendo informações sobre conflitos armados, crises ambientais e catástrofes globais — mas quase nunca com a tradução adequada para a sua faixa etária. Sem espaço para entender, o noticiário vira um gerador de angústia.
A ausência de mediação transforma o que deveria informar em algo que apenas assusta.
Compartilhar sem entender: um reflexo do nosso tempo
O ato de compartilhar virou automático. Crianças compartilham o que acham interessante, engraçado ou urgente — mas raramente checam a veracidade. Isso também foi mapeado pelo estudo. E, infelizmente, é um reflexo direto do comportamento adulto.
Sem entender o conteúdo por completo, elas o espalham. E assim se forma um ciclo perigoso: desinformação que vem de todos os lados, amplificada por quem ainda não tem ferramentas para filtrá-la.
Pais presentes fazem toda a diferença
A boa notícia? Crianças cujos pais discutem notícias em casa têm desempenho muito melhor na compreensão do conteúdo. Isso vale mais do que qualquer filtro digital.
Discutir manchetes, refletir sobre vídeos que viralizaram e até questionar juntos a origem de certos conteúdos são atitudes simples que constroem consciência e confiança.
O bem-estar digital nasce quando a criança sabe que pode perguntar sem ser julgada — e que tem adultos ao seu lado para ajudá-la a pensar, não apenas a reagir.
Em vez de bloquear, desbloqueie o pensamento
Seja no noticiário, nas redes ou nas salas de aula, o desafio não é proteger as crianças da informação. É prepará-las para ela.
Elas já estão expostas. A questão é: com que repertório estão lidando com isso? Com que referências estão construindo suas opiniões?
A resposta está na escuta, na presença e no exemplo dos adultos. E, acima de tudo, na capacidade de mostrar que o mundo é mais complexo do que um vídeo de 30 segundos — mas que, com contexto e diálogo, ele se torna muito mais compreensível.
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