
Nessa semana o Google lançou sua atualização mais recente em termos de geração de vídeos por Inteligência Artificial.
O projeto, denominado de “Veo 3”, é o modelo de geração de vídeo mais avançado da companhia, capaz de produzir clipes com uma variedade de sons, como ruídos de trânsito e diálogos entre personagens. Já o Flow serve como modelo de vídeo generativo para a criação de produções cinematográficas realistas a partir de comandos intuitivos.
A evolução dessa ferramenta ao gerar vídeos é inacreditável.
O nível de realismo desses vídeos, pela primeira vez, me deixou em dúvida se aquilo realmente era real ou virtualmente gerado. É assustador.
(eles fizeram até um comercial fictício de um remédio com a ferramenta – assista todos os exemplos aqui).
Recentemente, durante uma oficina sobre influenciadores digitais (gerados por IA), um aluno me disse que “Eu não consigo ver a diferença entre o real e o virtual mais“.
Ele não está sozinho.
A dificuldade de reconhecer autenticidade em conteúdos online (até então mais restrita a idosos) está chegando também para as gerações mais novas. Com a Inteligência Artificial invadindo a produção de conteúdos, mídias e até servindo de amigos virtuais, a linha entre o que é real e virtual está se tornado cada dia mais tênue.
Kevin Kelly, ex-editor chefe de uma das maiores revistas de tecnologia do mundo (quando elas ainda existiam) deu um nome para esse estágio em que estamos chegando: “Technium“.
Segundo ele, o Technium seria um sistema interconectado de todas as tecnologias existentes, incluindo não apenas dispositivos e máquinas, mas também culturas, instituições, processos e até mesmo ideias tecnológicas. Para Kelly, o technium é mais do que a soma das tecnologias individuais — ele possui características quase orgânicas, como uma espécie de ecossistema vivo que evolui, cresce e manifesta uma espécie de “vontade própria“.
Nessa semana, o “Technium” avançou mais um passo para dentro das nossas vidas.
Quando o virtual ultrapassa o real
A sensação de que não conseguimos mais diferenciar o que é real do que é gerado artificialmente não é apenas um efeito colateral da inovação — é o próprio sinal de que vivemos em um novo paradigma. A hiper-realidade, conceito já discutido por pensadores como Baudrillard, ganha contornos mais concretos quando vídeos criados por IA reproduzem com precisão vozes humanas, expressões emocionais e ambientes inteiros.
Quando uma criança ou adolescente assiste a um vídeo criado por IA e não consegue distinguir sua veracidade, isso não é apenas uma questão de percepção estética — é uma nova alfabetização que está sendo exigida: a alfabetização digital crítica.
O impacto na infância e adolescência
O universo das crianças está sendo rapidamente povoado por personagens, influenciadores e narrativas geradas por IA. Essas figuras não envelhecem, não cometem erros, estão sempre disponíveis e respondem de forma idealizada. Isso cria um padrão emocional inatingível e afeta diretamente a forma como os jovens constroem relacionamentos, lidam com frustrações e moldam suas expectativas sobre o mundo.
Além disso, a confiança nas imagens como prova da realidade — um pilar fundamental para a educação e a cidadania — está sendo erodida. Se tudo pode ser forjado com perfeição, qual é o valor do registro, da memória, da testemunha?
Como a IA irá moldar a percepção de realidade das novas gerações?
A Inteligência Artificial não é apenas uma ferramenta — é um novo filtro de mundo. Ela não apenas processa a realidade, mas a reinterpreta, a reconstrói e, em muitos casos, a reinventa. Para as novas gerações, que estão crescendo com assistentes virtuais, avatares hiper-realistas e vídeos indistinguíveis do real, a IA se tornará parte da moldura com a qual enxergam o que é possível, o que é verdadeiro e o que é confiável.
1. Realidade como escolha personalizada
Com a IA, o conteúdo é moldado sob medida para cada indivíduo. Plataformas já usam algoritmos para prever o que gostamos, mas a IA generativa vai além: ela cria mundos sob demanda. Crianças e adolescentes poderão pedir a um sistema que gere um filme com o final que preferirem, que desenhe um universo só para elas ou que gere uma nova “realidade alternativa” com base em suas preferências.
Risco: A realidade passa a ser vista como algo moldável ao desejo, o que pode enfraquecer a tolerância à frustração, a capacidade de negociação com o outro e o entendimento de limites objetivos do mundo.
Para educadores e pais: Incentivar experiências compartilhadas e não personalizadas, como jogos coletivos, leitura de livros comuns e projetos em grupo, pode reequilibrar essa lógica.
2. O enfraquecimento do “prova real”
Se antes usávamos uma foto ou um vídeo como prova de que algo aconteceu, agora sabemos que isso não é mais confiável. A IA pode criar falas de pessoas que nunca disseram o que foi mostrado, reconstruir rostos com perfeição e gerar eventos completos que nunca existiram.
Risco: A perda da confiança em evidências visuais e sonoras pode gerar duas reações perigosas: a credulidade total (“se está na internet, é real”) ou o ceticismo absoluto (“nada é confiável”). Ambos são terrenos férteis para a desinformação.
Para educadores e pais: Ensinar a verificação de fatos, apresentar diferentes fontes de informação e incentivar a dúvida saudável são práticas que podem ajudar as novas gerações a navegar nesse cenário.
3. A construção de identidades em um espelho digital
A IA será cada vez mais usada para criar avatares, perfis, influenciadores e até “eus alternativos”. Crianças poderão brincar com versões idealizadas de si mesmas — mais bonitas, mais populares, mais talentosas. Esse espelho, no entanto, pode se tornar uma prisão emocional.
Risco: A construção da identidade pode ficar pautada pela lógica da perfeição artificial, levando a crises de autoestima, desconexão com o corpo e sentimentos de inadequação frente ao “eu idealizado”.
Para educadores e pais: Promover o autoconhecimento, a valorização do erro, a expressão artística e a autenticidade são ferramentas fundamentais para ancorar a identidade no real.
4. Amizades e vínculos mediados por IA
Já existem assistentes virtuais que se tornam “amigos” das crianças. Alguns jovens interagem diariamente com bots que os elogiam, respondem com empatia e estão sempre disponíveis. Embora isso possa parecer inofensivo, substitui interações humanas complexas por relações previsíveis e controladas.
Risco: Relações reais exigem escuta, paciência, limites e frustrações. O vínculo com IAs pode empobrecer a capacidade de lidar com conflitos reais e de construir empatia verdadeira.
Para educadores e pais: Incentivar vínculos reais, mesmo com seus conflitos e imperfeições, é essencial. Isso inclui a convivência em grupos diversos, a mediação de conflitos e o apoio emocional humano.
Um novo pacto educativo
Se a IA vai moldar a percepção de realidade das novas gerações — e tudo indica que sim — então o nosso papel é moldar a relação dessas gerações com a IA. Isso exige:
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- Atualização constante dos educadores: não para dominar todas as tecnologias, mas para compreender seus impactos e dialogar com eles.
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- Participação ativa das famílias: não como fiscais do tempo de tela, mas como parceiros na construção de um repertório digital ético e crítico.
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- Espaços seguros para o erro: porque o aprendizado real acontece na dúvida, na falha e na reconstrução — e não na perfeição artificial.
Entre o encantamento e a responsabilidade
A IA é fascinante. Ela nos dá superpoderes criativos, amplia horizontes e desafia antigos limites. Mas, como todo poder, ela exige responsabilidade.
As novas gerações estão crescendo em um mundo onde o real é negociável, o virtual é emocionalmente envolvente e a autenticidade é uma construção frágil. Prepará-las para isso é, mais do que nunca, um ato de amor, de coragem e de presença.
O papel da escola e da família no Technium
O Technium está entre nós — e ele não vai embora. Assim como aprendemos a viver com a eletricidade, a imprensa ou a internet, teremos que aprender a viver com uma realidade em que o real e o artificial se entrelaçam.
O papel da escola e da família será mais importante do que nunca: não como barreira contra a tecnologia, mas como guias para uma travessia mais consciente, mais crítica e mais humana nesse novo ecossistema.
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